10 março 2020

o que é não-binariedade?

Já faz uns dias que tenho sentido uma profunda vontade de diversificar o conteúdo do blog um pouco, provavelmente devido ao excesso de postagens em estilo diário. Não que escrever sobre minha vida seja negativo, só que se tudo fica na mesmice eu acabo cansando e por isso preciso inovar. Quero escrever sobre coisas que provoquem reflexão, que possam ser úteis e informativas também e não só sobre a morte da bezerra — embora seu infeliz falecimento seja o tópico central de meus pensamentos na maioria do tempo.

Pra dar início a essas postagens informativas, logo cogitei a questão de Identidade de Gênero, uma vez que tenho considerável embasamento na luta LGBTQ+ e também porque dúvidas relacionadas a gênero têm me contemplado mais que nunca nos últimos meses. Penso em introduzir os conceitos básicos necessários para entender o que é identidade de gênero e então introduzir a diferença de binariedade para não-binariedade, exemplificando e de quebra tocando também nas polêmicas relacionadas a neolinguagem. Todavia, como sempre acabo me empolgando enquanto escrevo, talvez as coisas tomem um rumo um tanto quanto diferente e eu até me estenda demais vksjds

musiquinha para vosso entretimento, como de costume

Conceitos básicos envolvendo gênero

  • A diferença entre sexo biológico e gênero: O termo "sexo biológico" refere-se ao gênero que foi designado a uma pessoa quando ela nasceu, podendo este estar no binário de feminino x masculino ou no espectro intersexo, entre os quais está incluso o hermafroditismo e mais de vinte outras formas de intersexualidade (mas que, até onde fui informada, também recebem registro feminino ou masculino). Gênero diz respeito a como uma pessoa se identifica e deseja ser interpretada em sociedade, sendo completamente independente da expressão de gênero e do conceito de papéis de gênero (ou seja, uma pessoa se identificar com o gênero feminino não significa que ela concorda com todas as imposições que aquele gênero sofre em sociedade, desde "ter de usar rosa" a maternidade compulsória, e também não significa que ela deseja se vestir e se comportar da forma que é tipicamente esperada no conceito cultural da realidade dela).
  • Expressão de gênero: É como uma pessoa se sente confortável em seu próprio gênero, com base no que é culturalmente lido como tipicamente feminino e masculino (roupas, comportamentos, dependendo do contexto pronomes e outras coisas). Existem inúmeras expressões de gênero e, como mencionado anteriormente, a forma que uma pessoa expressa seu gênero não interfere em nada em quão válido ele é.
  • Papéis de gênero: São normas impostas socialmente com base no tipicamente masculino e feminino, que variam de acordo com a cultura, religião, espaço geográfico e outros diversos fatores. Um exemplo da pluralidade cultural para papéis de gênero é a Tribo chinesa Mosuo, em que os homens são responsáveis pelas tarefas domésticas e as mulheres lideram a sociedade — um pouquinho distante do que é esperado de cada gênero aqui no Brasil (e da própria China, onde é comum o infanticídio feminino).
  • Cisgeneridade e transgeneridade binária: Todas as pessoas recebem uma designação de gênero, o dito sexo biológico. A dicotomia da cisgeneridade e transgeneridade diz respeito à sua identificação (ou à ausência dela) com esse gênero. Por exemplo: Fulana foi designada com o gênero masculino ao nascer, mas se identifica com o gênero feminino. Já Beltrana foi designada com o gênero feminino e também se identifica com o gênero feminino. Fulana é uma mulher trans, enquanto Beltrana é uma mulher cis. Ou seja: Quando uma pessoa se identifica com o gênero correspondente àquele designado em seu nascimento, ela é cis; se não, é trans.
  • Privilégio cis: Diz respeito a uma série de benefícios que contemplam homens e mulheres cis, como por exemplo, a ausência de questionamentos alheios acerca de seu gênero e o direito de usar o banheiro correspondente a seu gênero sem nenhuma burocracia. Não significa que homens e mulheres cis são igualmente privilegiados, afinal homens cis brancos, neurotípicos e heterossexuais são mais privilegiados que qualquer categoria social e quanto mais uma pessoa se afasta desse ideal, mais preconceitos ela sofre e menos privilégios a contemplam. Mulheres cis têm o privilégio de não passarem pelos desconfortos e sofrer o mesmo preconceito que mulheres trans, assim como homens cis não têm as vivências de um homem trans.
  
lotor: príncipe injustiçado

Binarismo x Não-binariedade

O binarismo de gênero corresponde à ideia de que homem e mulher são os únicos gêneros possíveis e "naturais", sendo o maior embasamento para a defesa dessa ideia o fator biológico (o que, como já vimos, não é consistente, uma vez que existem diversas formas de intersexualidade, condição biológica que foge desse padrão). Pessoas cis e trans binárias se enquadram exclusivamente em homem ou mulher, não podendo ser nada além de um deles.

Já a não-binariedade é a noção de que existem mais de dois gêneros e que as pessoas podem ser homem, mulher, mais de um, nenhum deles ou fluir entre vários gêneros. Ainda condiz com a ideia de que existe um número finito de gêneros, mas não estão presos à noção de tão poucas identidades possíveis. Toda pessoa não binária é por padrão uma pessoa transgênero, visto que não se identifica exclusivamente com o gênero designado ao nascer.
  • Identidades não-binárias e o Tumblr: O que mais ouço é que o surgimento da não-binariedade de gênero se deu pelo Tumblr e pela disseminação da "teoria queer" por adolescentes de quatorze anos que querem uma opressão pra chamar de sua. De fato, existe uma certa popularização da comunidade trans enby (não-binária) por conta da presença de muitos LGBTQ+ na rede social em questão, mas não é por isso que as identidades são inválidas. Gêneros que não se refiram a coisas (gênero-estrela, gênero-estática), qualidades (gênero-fofo) e coisas do tipo são integralmente válidos (e os que se referem a esse tipo de coisa são em sua maioria clickbait).
  • Identidades não-binárias e sua importância cultural: Apesar de o exemplo mais citado ser a identidade de dois-espíritos (identidade exclusivamente indígena, em que os indivíduos possuem o espírito feminino e masculino dentro de si), existe uma ampla gama de culturas que incluem gêneros não-binários. A não-binariedade esteve presente em muitos contextos ao longo da história humana, em alguns deles inclusive sendo motivo de celebração. (Uma lista de identidades além do homem e da mulher).
  • O que é neolinguagem: Forma de neutralizar a linguagem, tornando-a inclusiva para todos os gêneros. Em inglês, usa-se o they no lugar de she/he como forma de neutralizar a frase e torná-la inclusiva. Em português, a comunidade trans está tentando utilizar o elu (e eu planejo fazer uma postagem exclusivamente sobre isso).
  • A importância da neolinguagem para pessoas trans: Existe um conceito chamado "misgender" que corresponde ao acontecimento de ter seu gênero lido incorretamente com base em sua aparência que seria evitado com a formalização da linguagem neutra. Além disso, as pessoas que preferem usar somente o pronome neutro como forma de identificação (ou seja, cujos pronomes em português seriam elu/delu e em inglês they/them) seriam definitivamente inclusas no padrão culto e não seriam forçadas a optar pelo masculino ou feminino como segunda opção para aqueles que "não se acostumariam" a utilizar essa flexão de gênero. Outra questão importante contemplada pela neolinguagem é deixar de aderir ao masculino como forma de neutralização de frase.
  • Por que não faço uso dessa linguagem diariamente? Gosto de tornar a linguagem o mais inclusiva possível e por isso não podemos esquecer também das pessoas autistas, disléxicas e neurotípicas em geral. A flexão de gênero para o neutro não é algo a que todos os seres humanos do planeta estão habituados e isso pode atrapalhar muito a leitura e comunicação dessas pessoas. Acho importante que se use a linguagem neutra, atualmente, quando "elu" for o pronome da pessoa a quem você está se dirigindo. É importante sim que nos mobilizemos e que se mude a norma culta, mas com sutileza para que essas pessoas não fiquem mais excluídas do que já são usualmente.

Exemplos de identidades de gênero não-binárias

  • Não-binário: Termo guarda-chuva para todo o espectro enby que é usado por alguém que não se identifica com nenhum gênero específico do espectro, mas não se identifica com os gêneros binários.
  • Agênero: Como o prefixo "a" sugere, diz respeito à ausência de gênero ou a "gênero neutro". Também pode englobar pessoas que simplesmente não ligam para seu gênero e não se identificam com aquele designado em seu nascimento.
  • Gênero-fluido: Identidade de gênero que flui entre dois ou mais gêneros, dependendo de como a pessoa se sente. Não tem nada a ver com as roupas da pessoa, como indicado por essa magnífica imagem  ♥️
  • Bigênero: Pessoa que se identifica com dois gêneros (inclusive, dois espíritos é um exemplo de identidade bigênero) que podem ser ou não o feminino e o masculino.
  • Travesti: As travestis podem sim ser consideradas um gênero a parte das mulheres trans (mesmo que também sejam mulheres), uma vez que travesti é uma mulher trans latino-americana que prefere se denominar simplesmente "travesti". Não é uma identidade não-binária pois uma travesti ainda se identifica como mulher, mas achei importante destacar esse fato.
    É engraçado como essa postagem é tão diferente e maior do que as outras coisas que costumo escrever. E também é engraçado de perceber o quão difícil foi escrever, já que sempre gosto de pensar "uma pessoa de 12 anos conseguiria entender isso? e uma de 20? e uma de 35? e uma pessoa que não tem embasamento sobre o assunto?" e aí acabo sendo o mais detalhista possível. E agora dou adeus a quem me lê e vou terminar minha tarefa de geometria espacial. Até mais ♥️

      6 comentários:

      1. Incrível e muito informativo sem contar q ficou lindo S2 S2

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      2. Nhoi Wood <3

        Acho sempre importante a gente poder expressar nossas lutas nos bloguinhos - não é porque falamos do que gostamos ou da nossa rotina que não somos atravessados ou transformados por esse tipo de coisa, né non?

        Acabei me confundindo com algumas coisas, porque acho que aprendi de maneira diferente e aí não sei dizer se eu que não sabia ou se conheci de outra forma, mas achei o post bem informativo!

        Uma coisa interessante pra dividir: quando Freud fez o texto que mais se refere dele, Os 3 ensaios sobre a sexualidade, ele explica duas coisas bacanas - a primeira é que todo mundo nasce bissexual e que só vai pender pra um gênero quando seu desenvolvimento sexual estiver totalmente desenvolvido (e aí naquela época só existia o modelo binário, mas anos 20, pensa só que revolucionário!) e os conceitos de masculinidade e feminilidade. O Freud acredita que são um conjunto de características que não estão atreladas ao sexo biológico, orientação sexual ou gênero - seria tipo: delicadeza e doçura são características femininas, então um homem cis heterossexual pode ser feminino, enquanto que agressividade e liderança é uma característica masculina, então uma mulher cis heterossexual que seja mais agressiva, tenha perfil de líder, é uma mulher masculina. É uma ideia que confunde muita gente, mas quando se entende, é super bacana - isso sem falar de que os esteriótipos de beleza, de força e afins mudam totalmente dependendo da cultura, então mil coisas pra se pensar. ENFIM, dei a louca da psicanálise e vim aqui compartilhar meus conceitos, HUAHSUAHSUAHSU!

        Por fim, eu tenho muita dificuldade com essa coisa da linguagem. Atualmente em ambientes mais diversos eu tendo a só excluir o gênero das palavras (e colocar um _ pra que as pessoas leiam no gênero que as apetece, ou sem), mas tenho dificuldade em aderir a isso o tempo inteiro. Acho importante a gente sempre ter em mente que todos nascemos numa sociedade engessada, binária, preconceituosa, e que temos que desconstruir isso aos poucos - infelizmente as mudanças são muito mais rápidas, e acho que acabamos com certa pressa pq muita gente sofre por isso. Enfim, a gente se conscientizando e aprendendo a pelo menos perguntar pra pessoa como ela gostaria que a gente se referisse a ela já me parece um bom lugar.

        Fico por aqui :* Beijo!

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        1. Oi Shana!! :)

          eu também acho!! e eu super gosto de falar sobre essas questões sociais, já que to sempre estudando elas na escola e já apresentei vários trabalhos/fiz uns cursos sobre, aí meio que fico empolgada e me acho super no direito vjsdsskfjs

          eu super espero que não tenha sido por conta da minha má comunicação :/ eu sempre tento explicar da maneira mais minuciosa possível pra que ninguém se perca, mas se tu realmente não tiver entendido ou discordar de alguma coisa pode me chamar no discord pra gente conversar!!

          ano que vem eu vou estudar freud (talvez eu estude por conta esse ano porque to sem aula e não tenho mais nada pra fazer //além de tudo), mas ainda não li muito a respeito. eu ADOREI saber dessas informações porque pelas coisas que meus amigos formados falavam a respeito de seus estudos sobre ele, eu tava meio ??? kdjfksd é uma corrente teórica muito massa se a gente for pensar e que certamente deu muito a pensar pra época né? POR FAVOR, continue dando a louca da psicanálise mais vezes porque eu tenho muito interesse a respeito e cada vez que tu compartilha uma coisinha eu fico encantada vlskdlsdk

          Eu não tenho dificuldades, mas é porque reconheço que tenho facilidade com a linguagem em si. Todos os meus amigos têm bastantes dificuldades com flexão pro gênero neutro e eu acho bem incoerente "obrigar" as pessoas a usar, como certos ativistas fazem. Tenho mais dificuldade de fazê-lo na prática (porque aqui no RS a gente pronuncia MUITO FORTE as palavras, e eu pronuncio elas mais forte que o normal ainda) e enrolo muito a língua, por isso sempre opto por neutralizar usando "todas as pessoas" e variantes do tipo. E essa última frase é MUITO necessária!!! #normalizemperguntarospronomes

          Tchau tchau!!

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      3. Olá... Bom, eu poderia falar muita coisa porque realmente é um assunto que me interessa e por vezes faz alguma confusão... Okok buguei no que iria dizer, primeiramente Oii outra vez. Adorei "Wood"! é MUITO fofo. ♥

        Eu confesso que me assumo como menina porque sempre cresci assim e o pronome com que as pessoas me tratam é um tanto indiferente. Geralmente, pela intuição e senso comum normal, termos femininos são a regra com que as pessoas olham para mim. É mais simples. Deste modo, não crio complicações para os outros. Não preciso discutir, não preciso me explicar (até porque eu nem o sei fazer). Mesmo assim, hoje nem tanto, mas "maria-rapaz" foi um termo que esteve muito presente em fases do meu crescimento. Em algumas partes da vida achei que tinha algo de errado comigo, porque eu não era como as outras meninas, identificava-me mais com meninos em certos aspectos, mas também não era um menino. Não me sentia uma menina de verdade, mas também não um menino. Agora que penso nisso, faz algum sentido apesar de eu não saber com o que me etiquetar. Talvez a verdade seja que eu evito etiquetações. O facto de me tentar definir com uma palavra não causa um pouquinho de ansiedade? Então e se eu falar que sou X mas depois afinal sou Y? Eu sou só eu, caramba... E será que eu estou sendo mesmo eu? O que sou "eu"? Bom... Avançando... Eu não tenho disforia. Teve uma época que eu odiava tudo o que fosse órgãos genitais, independentemente de quais fossem, mas depois eu aceitei que a maioria do mundo tem, e é algo natural como ter nariz, braços e coluna vertebral. Acho que eu era fresca demais e havia conceitos ruins enraizados em mim, talvez pela sociedade, religião, ou o que for. Enfim, o problema não era apenas genitália, mas tudo relacionado com sexualidade me incomodava. Complexos com o meu corpo mais sérios era mesmo o facto de eu não gostar de mim própria, porque eu não me achava um ser humano bonito e merecedor de amor. Mais tarde, enfrentei uma fase de autodescoberta do meu corpo. A aceitação está se desenvolvendo até hoje. Hoje sou mais aberta a certos assuntos. Tenho curiosidade. Quero experimentar praticamente tudo. Apesar de ainda ter um nervosinho grande envolvente. Insegurança e medo.

        Ao ler esse post notei que... e se eu não for nada? tem problema? sei lá...
        Talvez iria para o agénero, uma vez que "tanto faz". Apesar de que inicialmente seria estranho alguém me tratar no masculino na vida real, apenas porque não estou habituada, e não porque me ofenderia.

        Abraços,
        - Ani

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        1. eu também tenho muito interesse nesse assunto e me incomodo um pouco com a confusão gerada por ele, no geral.

          eu nunca me identifiquei totalmente com o rótulo "menina", simplesmente carregava isso porque nasci com ele e é mais fácil carregar do que pensar sobre isso. agora meu gênero ta de pernas pro ar e eu não faço ideia se me alinho a algum. estou usando pronomes femininos por convenção. eu sempre fui uma pessoa tipicamente feminina na infância, porque eu gostava mais de imaginar e de coisas bonitas e isso é considerado "coisa de menina". eu preferia brincar de casinha do que jogar bola, mas nunca me importei de ser o pai. também tenho muito receio de me intitular x e na realidade não ser, e consequentemente me tornar um peso ou desserviço para aqueles que realmente são x. eu acredito que também não tenho disforia, só uns incômodos temporários com algumas coisas relacionadas ao feminino (tipo, em determinadas épocas da minha vida pronomes femininos, meu útero e etc me fazem querer morrer, mas depois eu não consigo que me leiam no masculino também).

          e por fim, ta tudo bem não ser nada. ou ser várias coisas. ou mudar o que voce é. ou experimentar rótulos. todas as experiências são válidas e eu acho que se testar e auto-descobrir é importante demais pra gente se conhecer melhor!

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